Cidades

Novo marco: Falta de responsabilidade com o lixo está com os dias contados

O novo marco legal do saneamento básico no país, sancionado no último mês pelo presidente Jair Bolsonaro, prevê a universalização dos serviços de água e esgoto até 2033. O texto, aprovado no Congresso após muita discussão, viabiliza a injeção de mais investimentos privados nos serviços de saneamento.

Também ficou estabelecido um prazo para o fim dos lixões no país. De acordo com o governo, para capitais e regiões metropolitanas, esse prazo é 31 de dezembro deste ano.

São muitas as leis que proíbem lixões no Brasil. A mais importante delas foi aprovada há dez anos. A Política Nacional de Resíduos Sólidos deu prazo até 2014 para que todos os vazadouros clandestinos de lixo a céu aberto fossem encerrados.

Mas muitos prefeitos alegaram não ter recursos para resolver o problema. Resultado: hoje, quase 3 mil lixões continuam por aí, poluindo o ar, as águas, o solo, e atraindo vetores que espalham doenças.

Descaso com o lixo

Na Região dos Lagos, diversas cidades terão que correr para cumprir o novo marco. Mas, quando se fala em falta de responsabilidade com o lixo, Cabo Frio se destaca pelos extremos opostos. O município que já recebeu o título de Cidade Mais Limpa do Brasil, vem acumulando descasos nos últimos anos. Quem visitou Cabo Frio nos tempos de glória não reconhece a cidade hoje.

Não importa se passamos pelo Centro da cidade ou pelos bairros da periferia, a situação é a mesma. É lixo e pilhas de entulhos que se acumulam nas calçadas impossibilitando a passagem dos pedestres.

“Fui visitar a Praia do Forte, que tanto ouvia falar por sua beleza, mas não acreditei no que vi no caminho até lá. Fui caminhando pelo Centro da cidade e tive que andar na rua diversas vezes porque tinham pilhas de lixo na calçada, além de um mal cheiro constante em diversos trechos. A praia realmente é linda, mas o caminho até lá é sofrido”, relatou um casal de turistas que visitou a cidade.

Em diversos bairros, causam danos ainda mais graves como é o caso do bairro nobre, Parque Burle, que assim como tantos outros da cidade, inunda a cada chuva que cai. O bairro vizinho, Portinho, onde fica localizado o shopping do município também sofre com o mesmo descaso. Inclusive, quem visita o shopping em dias de chuva mais forte já se prepara para a possibilidade de ficar ilhado, pois a rua principal, a Henrique Terra, via de grande movimento, vira um lago.

Tudo isso acontece pela combinação imprudente de falta de saneamento correto e drenagem da água pluvial e lixo espalhado pelas ruas.

“Já passei por uma situação muito assustadora”, relata a moradora Tânia. “Nunca tinha ido ao shopping em dia de chuva e quando fui, me vi completamente ilhada junto a todas as outras pessoas que estavam naquele dia. A água na rua batia no nosso joelho e tinha uma espécie de correnteza que puxava a gente. Tivemos que formar uma corrente humana para poder atravessar a rua e chegar à segurança. Tudo isso mergulhando em uma água de cheiro muito ruim. Como moradora que paga seus impostos em dia, não me conformo com isso”.

O relato foi sobre o Portinho, bairro nobre da cidade. Já no Distrito de Tamoios, a população se diz esquecida pelo governo municipal.

“Se no Centro, a coisa já está feia e nada é feito para resolver, imagina aqui no Segundo Distrito. Ficamos abandonados pela prefeitura. Eles deixam as pilhas de lixo tomarem proporções absurdas para poder vir recolher e nós pais de família e os nossos que temos que conviver com o cheiro terrível, sem falar nos animais que aparecem. Nós também somos moradores de Cabo Frio e exigimos respeito”, relata um morador que prefere não se identificar por medo de represálias.

Prazos

A aprovação do novo marco regulatório do saneamento definiu novas regras para a universalização dos serviços de água, esgoto e também para erradicação dos lixões. Foram estabelecidos novos prazos para que as prefeituras promovam a destinação inteligente dos resíduos e os meios de financiar essas soluções.

Em agosto de 2021, termina o prazo para que todas as capitais e cidades das regiões metropolitanas resolvam o problema. Depois delas, a data limite para os municípios com mais de 100 mil habitantes será em agosto do ano seguinte. Em 2023, para os municípios com população entre 50 mil e 100 mil. E em 2024, para aqueles com menos de 50 mil habitantes.

Para o diretor-executivo da Associação Brasileira das Empresas de Limpeza Pública (ABRELPE), Carlos Silva Filho, o aterro sanitário, que custa caro, não é a única solução: “Municípios pequenos e municípios em que realmente há um índice elevado de pobreza, existem alternativas de baixo custo para lidar com os resíduos sólidos”.

A separação dos recicláveis e a transformação dos restos de comida em adubo orgânico são algumas das opções.

O presidente da Confederação Nacional dos Municípios, Glademir Haroldi, considera o marco regulatório do saneamento um avanço, mas quer ajuda dos estados e da União: “Nós precisaríamos algo em torno de R$ 30 bilhões para resolvermos os problemas de lixões no Brasil. Só a questão da cobrança de taxas – com certeza isso vai acontecer -, mas só isso não resolve”.

Para Fabrício Soler, especialista em direito ambiental e professor de Direito Ambiental da PUC-SP, os prefeitos não necessitam de nenhuma ajuda a mais do que aquela que a lei já estabelece, como a cobrança de taxas. E quem não cumprir os novos prazos terá que se entender com a Justiça.

“Caso não cumpra, poderá incorrer em improbidade administrativa, pode ter penalidade de inelegibilidade do prefeito. Portanto, eu acredito que, com essa prorrogação do prazo, condicionado e com uma maior articulação e fiscalização dos órgãos de controle, tribunais de contas e ministérios públicos, e também órgãos ambientais e sociedade civil, tende a ter um cenário melhor nos próximos quatro anos, visando a eliminação dos lixões”, afirma.

Saneamento básico também entrou no marco

Atualmente, em 94% das cidades brasileiras o serviço de saneamento é prestado por empresas estatais. As empresas privadas administram o serviço em apenas 6% das cidades. A nova lei extingue os chamados contratos de programa, aqueles em que prefeitos e governadores firmavam termos de parceria diretamente com as empresas estatais, sem licitação. Com a nova lei, será obrigatória a abertura de licitação, na qual poderão concorrer prestadores de serviço públicos ou privados.

De acordo com o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (Bndes) já tem uma carteira de mais de R$ 50 bilhões em investimentos, pronta para ser oferecida à iniciativa privada. O primeiro leilão deve ser em setembro, em Alagoas.

Segundo Marinho, Rio de Janeiro e São Paulo já estão trabalhando para montar suas carteiras. No Amapá, 16 municípios do estado também consolidaram o consórcio para atrair os investimentos, processo que também está em curso no Acre. A expectativa do governo é de investimentos em torno de R$ 500 bilhões a R$ 700 bilhões em 10 anos.

O presidente do BNDES, Gustavo Montezano, afirmou que o saneamento será prioritário na agenda do banco para os próximos anos e “não haverá falta de crédito e financiamento para os projetos do setor”. O órgão também trabalhará como estruturador dos projetos e das modelagens de operação para definir a melhor política pública para cada estado e região, considerando a universalização no menor tempo possível, respeito à capacidade de pagamento de cada localidade, abertura de concorrência e sustentabilidade financeira do projeto.

“Uma boa modelagem, uma boa análise de impacto ambiental, uma boa engenharia são fundamentais para que os recursos sejam otimizados e aportados em tempo e a contento, nessa jornada de anos que temos pela frente”, disse.

A nova lei prevê também que os contratos em vigor poderão ser prorrogados por mais 30 anos, desde que as empresas comprovem a capacidade econômico-financeira e se adequem aos objetivos de universalização do marco. A metodologia para essa comprovação será publicada em até 90 dias, e as empresas terão até 30 de março de 2022 para consolidar os contratos em vigor.

As empresas devem ampliar o fornecimento de água para 99% da população e da coleta e tratamento de esgoto para 90% da população até o final de 2033. Mas há a possibilidade de extensão desse prazo até 2040, caso se comprove a inviabilidade técnica ou financeira.

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 35,7% da população brasileira não têm acesso aos serviços de saneamento básico, cerca de 75 milhões de pessoas. Na região Norte, oito de cada 10 domicílios não dispõem de esgoto sanitário (dados de 2018).

Para Marinho, o novo marco é o casamento perfeito entre saúde e economia. “Com as obras de saneamento nós proporcionamos emprego, renda, qualidade de vida, desenvolvimento sustentável, respeito ao meio ambiente, ecologia, tratamento adequado das águas e diminuição da mortalidade infantil, da pressão sobre a rede de saúde pública e de doenças endêmicas que já deveriam ter sido varridas do nosso país desde o século passado”, destacou.

O novo marco também prevê o sistema de saneamento com prestação de serviço regionalizada. Assim, empresas não podem fornecer serviço apenas para os municípios de interesse delas, que gerem lucro. A prestação regionalizada inclui municípios mais e menos atraentes e não necessariamente contíguos em um mesmo território de prestação.

Para isso, em até 180 dias, os estados devem compor grupos ou blocos de municípios, que poderão contratar os serviços de forma coletiva. A adesão é voluntária. O modelo anterior funcionava por meio de subsídio cruzado: as grandes cidades atendidas por uma mesma empresa estatal ajudavam a financiar a expansão do serviço nos municípios menores e mais afastados. “Esse marco vai permitir que os municípios que têm menos capacidade técnica e financeira não sejam deixados para trás”, disse o ministro Rogério Marinho.

Outros dispositivos

A nova legislação também deve contribuir para a revitalização de bacias hidrográficas, fortalecimento do papel regulatório da Agência Nacional de Águas (ANA) e alocação de recursos públicos federais e os financiamentos com recursos da União. Será instituído o Comitê Interministerial de Saneamento Básico (Cisb), sob a presidência do Ministério do Desenvolvimento regional, para assegurar a implementação da política.

O novo marco legal divide opiniões. Entre entidades empresariais, há expectativa de que a mudança na legislação gere condições de investimento e ambiente de negócio que possam favorecer a ampliação dos serviços de abastecimento de água e de coleta de esgoto. As entidades que se opõem temem que a medida privatize o acesso a recursos hídricos e deixe a universalização do saneamento fora de perspectiva.

Vetos da Presidência

O texto foi sancionado com 11 vetos. Em nota, a Secretaria-Geral da Presidência explicou a razão de três deles.

Foram vetados os parágrafos 6º e 7º do artigo 14 pois, “ao criarem uma nova regra para indenização de investimentos não amortizados das prestadoras de saneamento, geram insegurança jurídica por descompasso ao já previsto na Lei de Concessões (Lei 8.987/1995)”. “Ademais, como não é possível na prática a distinção da receita proveniente de tarifa direcionada para um ativo, haveria inviabilidade de pagamento da indenização”, diz a nota.

De acordo com a Secretaria-Geral, também foi vetado o artigo 16 e seu parágrafo único pois permitiam a renovação, por mais 30 anos, dos atuais contratos de programa. “[Dessa forma] prolongam demasiadamente a situação atual, de forma a postergar soluções para os impactos ambientais e de saúde pública de correntes da falta de saneamento básico e da gestão inadequada da limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos. Ademais, os dispositivos foram vetados por estarem em descompasso com os objetivos do novo marco legal do saneamento básico, que orientam a celebração de contratos de concessão, mediante prévia licitação, estimulando a competitividade da prestação desses serviços com eficiência e eficácia, o que por sua vez contribui para melhores resultados”, diz a nota.

O artigo 20 do projeto aprovado no Congresso foi vetado integralmente. De acordo com Rogério Marinho, o dispositivo impedia que o setor de tratamento de resíduos sólidos também fosse contemplado no novo marco legal, da mesma forma que o esgotamento sanitário e o acesso à água potável. A nota da Secretaria-Geral diz que isso quebraria “a isonomia entre as atividades de saneamento básico, de forma a impactar negativamente na competição saudável entre os interessados na prestação desses serviços, além de tornar menos atraente os investimentos”.

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