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Sexualidade: o assunto, a salvação

Orientação sexual é assunto de foro íntimo. Não sugiro interditar conversas a respeito, mas é que me espanta essa ”guerra de posições” na mídia. Sobre o tema, religiosos fanáticos (tautologia?) querem ditar regras de sociedades mediterrâneas primitivas à contemporaneidade. Lançam mão de escrituras muito antigas com algumas boas frases de efeito, mas cheias de péssimos exemplos (a Bíblia propõe trapaças, vinganças, nepotismo, corrupção, incestos, assassinato, escravidão, sexismo etc.), para alicerçar sua ”teoria”.

Estaria bem (ou menos mal) se a usassem para fundamentar as próprias práticas sexuais, mas querem haver suas formulações como uma teoria geral da sexualidade humana. Como não se sentem bem com diferenças tão próprias a humano\as, insistem em homogeneidade e saem em pregação, em tentativa de conformação.

Para dar satisfação íntima ao meu aborrecimento com essa gente, bastaria chamá-la de chata. É que o\as que se fazem missionário\as são mesmo aporrinhadore\as. Batem nas nossas portas nas manhãs dominicais, instalam autofalantes externos em seus templos, põem-se aos gritos nas praças públicas, ocupam meios de transporte público, e, claro, a invasão internética, usada com extrema competência.

Tudo com um argumento base: a urgência da ”salvação”, a que se somam outras ladainhas que evidenciam culpa. Culpa de que? Sei lá! Acho que é do que sentem vontade de fazer, mas não têm coragem para pôr em ato. Então, não querem que ninguém faça. Cada tesão mal resolvido é um sério risco ao tesão geral da humanidade. Mas xingá-los não atende à minha preocupação.

Esse\as pregadore\as individuais de escatologia, pecados e caminhos do céu, que deve ser um lugar horrível, cheio tipos assim, são, porém, menos graves que seus recursos midiáticos por atacado. Presto atenção na ”obra divina” levada a efeito pelos meios de comunicação. Se alguém verificar a programação dos diversos canais de televisão noite adentro, encontrará um espetáculo estarrecedor. Em concessões estatais, em um Estado laico, arautos de diversas confissões efetuam atividades religiosas, o que já pede reflexão. Nessas atividades incluem-se milagres de cura, o que recomenda intervenção das autoridades, dado que há explícitos ataques à saúde pública.

Essa ”obra divina” produz, entretanto, um dano mais grave: os palanques eletrônicos milagreiros conduzem esse\as pregadore\as aos cargos políticos. A notoriedade lhes proporciona votos. Feito\as político\as, solapam a República e forçam um estado-religião. Aí, depois, fatos consolidados, gestos tardatários, fazem-se passeatas, manifestos; grita-se fora fulano\a.

Essas manifestações tardias até logram alguma utilidade pedagógica, dado que polemizam certos tristes efeitos, mas, no geral das ocasiões, o\as religioso\as as capitalizam e as vendem como ”coisa do reino dos homens”. Resta que as ”ovelhas” se afirmam nas suas crenças e confirmam mais ”pastore\as” como líderes, já não de uma igreja, mas da Nação.

É sabido, o humano é natureza e cultura (eu diria: a natureza humana inclui a cultura). Cláudia Bonfim ensina: ”Sexo: biologicamente natural. Gênero: culturalmente construído. Identidade de gênero (ou identidade de sexo): forma como alguém se sente, se identifica, se apresenta, para si próprio e aos que o rodeiam, bem como, relaciona-se à percepção de si como ser ‘masculino’, ou ‘feminino’, ou ambos. Orientação sexual (ou opção sexual): sexo das pessoas pelas quais sentimos atração física, desejo e afeto”. Essa formulação conceitual, que inicialmente caracterizava a sexualidade humana como heterossexual, homossexual ou bissexual, desdobrou-se na comunidade LGBTQIAPN+.

Crentes, que levaram a sério o “crescei e multiplicai-vos”, fizeram-se muito\as (vide o recém-publicado senso do IBGE), são proativos e não suportam duas dessas possiblidades. Ora, não obstante o combate ideológico e mesmo físico que lhes é dado (refiro o número de assassinatos de pessoas sexualmente ”não convencionais”, triste estatística que anota o Brasil como campeão), tais alternativas existem; são “coisas” do mundo, têm o direito de se expressar.

Biologia (natureza) e cultura (dimensão simbólica) nos definem. Povos com organização social menos primitiva resguardam o universo político de influências religiosas. Nós demos marcha à ré. Estamos desfazendo a República, relativizando a Constituição e levando religião às escolas, aos meios de comunicação, ao Parlamento.

Essas práticas fazem não só a cabeça da massa ignara, fazem também parlamentares, logo, leis. O exercício de liberdades, incluindo a sexual, necessita de uma cultura libertária. Que o\as democratas preocupado\as com laicidade, república, igualdade de gênero, enfim, com os sentidos da civilização, façamos por nos salvar de atrasos tais e quais. Amém.

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