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A guerra do racismo no Brasil

Morte de congolês Moïse Kabagambe levanta debate sobre racismo no Brasil

O caso da morte do congolês Moïse Mugenyi Kabagambe tem gerado uma importante discussão no país. Dois dos três acusados do crime negaram que as agressões contra a vítima tivessem motivação racista ou xenofóbica. Em seu depoimento na Delegacia de Homicídios da Capital (DHC), na noite de terça-feira, o garçom Aleson Cristiano de Oliveira Fonseca, o Dezenove, afirmou que “o crime não teve nenhuma motivação racial, até mesmo porque, também é preto, como a vítima”. Mas afinal, o que é racismo? O Tribuna dos Municípios fez levantamento sobre o que dizem especialista em gênero e raça para responder essa e outras perguntas. Confira a seguir:

 

O que significa racismo?

O racismo é o preconceito contra um indivíduo por conta do seu fenótipo (características da aparência da pessoa, como a cor da pele ou o tipo de cabelo) e o grupo étnico pertencente.

Apesar da palavra racismo ser ligada à etimologia de raça, a sua própria origem pautada na ideia de que existam diferentes raças [no campo científico e não social] entre os seres humanos é um erro. Ou seja, a própria palavra “racismo” tem origem racista, de acordo com Bruna Cristina Jaquetto Pereira, especialista em gênero e raça e doutora em sociologia pela UnB (Universidade de Brasília).

“Racismo é a ideia de que grupos de seres humanos são diferentes em sua biologia (natureza), e que por isso são divididos em diferentes raças, sendo a entendida como a ‘raça branca’ superior às demais. A ciência já provou que embora grupos humanos tenham diferenças como cor da pele e textura de cabelo, tais diferenças não são suficientes para configurar diferentes raças, no sentido científico do termo”, explica Bruna.

Racismo, segundo o filósofo e professor Silvio de Almeida, “é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios, a depender do grupo racial ao qual pertençam”.

 

Existe racismo no Brasil?

Há 131 anos, o Brasil foi o último país do hemisfério ocidental a abolir legalmente a escravidão. Diante da pressão internacional e da força dos quilombos e movimentos abolicionistas, a Lei Áurea foi, enfim, assinada em 13 de maio de 1888. Este foi o último projeto de lei aprovado durante o regime imperial, após um processo de escravização de povos africanos que perdurou por mais de três séculos.

No entanto, a lei assinada pela Princesa Isabel não foi capaz de libertar o país da mancha histórica que o racismo representa para a sociedade brasileira. Alforriadas, as vítimas da escravidão foram abandonadas à própria sorte, em condições desumanas, para viverem à margem de um sistema que os têm colocado em desvantagem social desde então.

Nesse contexto, diversas violências e violações aos direitos humanos passaram a ser normalizadas. De abuso policial até discriminação em lojas e entrevistas de emprego, o preconceito racial engloba uma série de agressões sistêmicas contra negros no Brasil.

Um levantamento feito pela Rede de Observatórios da Segurança (ROS) revelou que a polícia mata uma pessoa negra a cada quatro horas em ao menos 6 estados brasileiros: Bahia, Ceará, Piauí, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo. Foram 2.653 mortes com registro racial ocorridas em 2020, das quais 82,7% tiveram como vítima pretos ou pardos.

O estudo da ROS coloca a polícia do Rio de Janeiro como a mais letal em números absolutos, como 939 mortes. A Bahia lidera proporcionalmente, com 98% das vítimas negras, seguida de perto por Pernambuco, com 97%.

Os números compõem o cenário do racismo estrutural no Brasil onde pretos e pardos têm 2,6 vezes mais chances de ser assassinados, representam 2/3 de todos os encarcerados e apresentam expectativa de vida três anos menor do que brancos.

 

Racismo é crime?

“O crime de racismo está previsto na Constituição Federal e trata-se de crime inafiançável e imprescritível. A Lei n° 7.716/1989 é que tipifica a discriminação racial como crime”, explica a professora e pesquisadora do Departamento de Direito do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo Eunice Aparecida de Jesus Prudente. Ainda de acordo com Eunice, essa lei é antiga e foi aperfeiçoada ao longo do tempo. Mas foi principalmente com a redação da Lei n° 9.459, de 1997, que foram caracterizados como crime os atos resultantes da discriminação ou preconceito por raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Enquanto o crime de discriminação racial está previsto na Constituição Federal de 1988, a injúria racial também é um crime e está previsto no Art. 104 do Código Penal brasileiro, porém, gera algumas controvérsias. “É verdade que, nos chamados crimes contra a honra, há o crime de injúria, que é quando se desqualifica e desrespeita a outra pessoa, muitas vezes envolvendo fenotípicos negros”, explica Eunice. “Ela é diferente e há muitas críticas, porque, em muitos casos manifestos de discriminação racial, onde deveria ser aplicada Lei n° 7.716, é aplicado o Código Penal como se fosse injúria racial”, critica a professora ao revelar que o crime de injúria não é imprescritível e inafiançável, como é a discriminação racial.

Em 2020, o número de casos de injúria racial registrado no Brasil foi de 10.291. Em contrapartida, o número absoluto de casos de racismo no País não ultrapassou 3 mil casos no mesmo ano. Os dados presentes no Anuário Brasileiro de Segurança Pública denunciam a urgência do debate sobre o racismo e o aprofundamento do problema no Brasil.

Ela ainda destaca que isso ocorre porque a atuação penal e o punitivismo não são suficientes para mudar uma sociedade e que é preciso investimento em educação e na percepção das diferenças que existem entre a população brasileira. Sobre a pessoa que comete o crime, Eunice comenta que, em sua maioria, são pessoas brancas, com níveis bons de escolaridade e integrantes do empresariado. “É um réu diferenciado, porque, no Brasil, a maioria da população carcerária é formada por jovens negros das periferias das cidades”, avalia. Segundo Eunice, quase 45% da população prisional brasileira está na faixa etária de 18 a 29 anos, assim como mais de 67% do total da população carcerária é negra, amarela ou indígena. “A negligência e péssima atuação do Legislativo brasileiro e, muitas vezes, do Executivo também revelam como a nossa sobrevivência tem dependido do Judiciário”, analisa.

 

Racismo reverso existe?

Não. O racismo demarca que uma parte da população sofreu com uma exploração oficial da sociedade, com exploração do trabalho, segregação financeira, de moradia e perseguição cultural sob a justificativa da raça. É estrutural.

A ideia de “raça” foi criada para tentar justificar o domínio que já era imposto a outras populações de forma violenta. Os efeitos do racismo no Brasil não foram reparados logo após o fim da escravidão, e os efeitos são sentidos pela população negra e também indígena.

Perante a lei somos iguais, sem distinção de qualquer natureza, como está assegurado na Constituição Brasileira [no Art. 5º]. O racismo no Brasil é um crime inafiançável e tipificado há mais de 30 anos.

 

O CASO

O congolês Moïse Mugenyi Kabagambe, espancado e morto aos 24 anos em um quiosque no Rio de Janeiro, foi alvo de 39 pauladas de taco de beisebol, tendo ficado imóvel a partir da 36ª, quando estava imobilizado por uma chave de perna.

De acordo com laudo do IML (Instituto Médico Legal), foram as pancadas que provocaram o traumatismo no tórax, com contusão pulmonar, que causou a morte de Moïse.

Três suspeitos foram presos após confessarem à polícia a autoria do crime. Eles afirmaram que foram intervir para proteger um colega, funcionário do quiosque Tropicália. Um deles justificou a agressividade que levou ao homicídio à raiva que estava sentido pelo fato, segundo disse, de a vítima estar incomodando clientes e trabalhadores da orla há dois dias.

Aleson Fonseca, 27, Brendon da Silva, 21, e Fábio Pirineus da Silva, 41, foram presos temporariamente por 30 dias na terça-feira (1º).

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